Este texto não é novo. Saiu no Caderno 2 do Estadão no final do ano passado, mais precisamente no dia 28 de dezembro. Eu mesma, só vi o texto quando voltei ao Brasil. Mesmo assim eu gostei e acho que vale a pena transcrevê-lo aqui já que é uma análise dos eventos fotográficos do ano passado. Portanto lá vai:
O reconhecimento do valor cultural da fotografia é algo ainda relativamente novo no campo das expressões e das ciências humanas. Tratada muitas vezes como suporte, como estudo, ela se viu transformada nos últimos anos em protagonista e também matéria-prima do fazer e das discussões em relação à imagem contemporânea.
Neste ano, pudemos ver isso de forma prática e não apenas na literatura ou nos campos acadêmicos. Nos últimos 20 anos, tem sido foco de discussão e reapresentação ou ressignificação de sua própria ontologia. Isso fica evidente quando ela – que sempre fez parte dos acervos museológicos como ferramenta objetiva ou de informação da modernidade – passa a fazer parte das galerias, das feiras de arte, como expressão que não representa, mas apresenta conceitos e significados que vão além da superfície bidimensional.
Dessa forma, pudemos apreciar exposições que retomaram o que se considera a imagem clássica como a do mestre da fotografia francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), reconhecido por suas imagens jornalísticas, mas que apresentadas como retrospectiva do autor – e pela sua própria edição – provaram muito mais a evolução de seu olhar, do seu pensamento imagético, do que propriamente uma narrativa de mundo. O mesmo pode ser dito da exposição de retratos de fotojornalistas do Estado, que inaugurava a entrada da SP-Arte/Foto, evento que reuniu 17 galerias e mais de 300 imagens. Os retratos, editados pelo jornalista Antonio Gonçalves Filho, privilegiavam o olhar autoral de cada artista, ou, melhor dizendo, repórter-fotográfico, na citação clara de que pensar que fotojornalismo não tem estética é mais uma falácia em torno da pequena-grande história da fotografia. Outra mostra que trouxe à tona essa discussão é a de Walker Evans (1903-1975), conhecido por seu trabalho durante a depressão americana da década de 1930.
Pensar a fotografia como objeto e não como ferramenta, obviamente não é novo, nem fruto do século 21. Considerada a expressão moderna por excelência, foi tomada de assalto pelos artistas vanguardistas, das primeiras décadas do século 20, que dela se apropriaram justamente por causa de sua funcionalidade, e aqui devemos destacar, com mais ênfase, dadaístas e surrealistas. As questões hoje são outras, falar da funcionalidade da fotografia já se tornou uma não-questão. Mas outras problemáticas acabam surgindo como a da sociedade do entretenimento, na qual quase todas as imagens se destacam não pelo seu conteúdo, mas por uma estética vazia, que transforma imagens em espetáculo no que de pior tem esta palavra.
E embora tenhamos visto excelentes mostras neste ano, a quantidade de fotos em cada uma – 150, 200, 300 – demonstra uma vontade de assombrar sem nada acrescentar. Caso por exemplo da exposição de Vik Muniz, uma mostra midiática em que se confunde o fazer artístico com o fazer espetáculo. Grandes produções, belos shows. Na contramão desse tipo de evento, no Itaú Cultural, a mostra A Invenção de Um Mundo, recorte do acervo da Maison Européenne de la Photographie, com curadoria de Eder Chiodetto e Jeal-Luc Monterosso, nos apresenta a imagem contemporânea pensada a partir da subjetividade de seu autor. A escolha dos curadores, bastante definida e dirigida, nos exibe artistas que por parábolas e metáforas acabam por questionar essa falta de profundidade a que temos assistido repetidamente. Como se a fotografia, ou a imagem, se bastasse por si. Seguindo essa linha da reflexão cognitiva e não do reflexo-espelho, tivemos as imagens de Robert Polidori, fotógrafo canadense trazido ao Brasil pelo Instituto Moreira Salles. E adota o grande formato como uma forma de evidenciar a passagem do tempo. Suas fotografias trazem as marcas do caos urbano causado pelo homem ou pela natureza.
Mas não foi só nas exposições que a fotografia foi protagonista neste ano. Na área editorial também houve belas publicações. Ainda pelo Instituto Moreira Salles, tivemos os belos livros de Maureen Bisilliat e Marcel Gautherot (1910-1996). A Companhia das Letras publicou o Elogiemos os Homens Ilustres, uma matéria elaborada pelo jornalista James Rufus Agee e pelo fotógrafo Walker Evans. Outro ponto alto do ano para o segmento foram, sem dúvida, os festivais em Porto Alegre, Rio, São Paulo e Paraty, onde a discussão se fez presente nas várias entrevistas com autores de estéticas completamente diferenciadas.
Mas se tudo foi brilho neste ano para a fotografia aqui no Brasil, tivemos também duas perdas bastante relevantes. Morrem Otto Stupakoff (1935-2009), o primeiro fotógrafo de moda brasileiro que fez vida e carreira nos Estados Unidos, mas havia retornado ao Brasil; e Mario Cravo Neto (1947-2009), um artista que sempre se destacou pela força de seu trabalho, retratando de forma bastante singular a cultura brasileira, em especial, a baiana. Otto teve bela exposição organizada pelo IMS e Mario Cravo Neto, a mostra Eternamente Agora: Um Tributo a Mario Cravo Neto, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Christian Cravo.
Foi um ano de pensar a fotografia, de discutir as imagens sem impor barreiras ou fronteiras. Um ano que parece ser a preparação para uma nova década que se inicia não só no fazer, mas, acima de tudo, no pensar a fotografia. O espaço conseguido parece ser irreversível. Cada vez mais ouviremos falar sobre ela.