O fotojornalismo na cultura da mídia e do entretenimento

Este texto foi publicado em 2012, no livro “Estudos de Comunicação Contemporânea: perspectivas e trajetórias. Editora Plêiade.

O tempo do olhar e do observar vem se transformando na sociedade contemporânea. Um tempo curto, fugidio, nem sempre permite um mergulho na imagem, muito menos uma relação de eterno retorno – “o tempo projetado pelo olhar é o tempo do eterno retorno” (Flusser, 2002:8) –, um olhar criativo e criador. Cada vez mais o entretenimento se apodera das formas de expressão, alterando as significações de estéticas já estabelecidas.
A superficialidade impede o aprofundamento das questões e problemáticas narrativas do jornalismo e, por consequência, do fotojornalismo. Como um mantra que se repete ininterruptamente e se espalha pelo mundo acadêmico, o tão falado mundo narcísico (remetendo obviamente ao conhecido mito de Narciso) não passa, na verdade, do mundo de Eco (aqui também nos referenciando ao mito, que coincidentemente está diretamente ligado ao mito de Narciso): uma sociedade que simplesmente ecoa representações sociais, construções imagéticas, sem os devidos aparatos de decodificação e, consequentemente, de capacidade crítica ou de reflexão.
Neste artigo, procuramos entender como, nas últimas décadas, a significação do fotojornalismo, sua construção e interpretação têm se alterado. Também, as discussões que nascem dentro dos parâmetros da chamada cultura da mídia, a partir do incremento de novas tecnologias de produção imagética, que trouxeram à tona a necessidade de se repensar a construção de significados na fotografia de imprensa. Esse percurso será acompanhado tanto por autores que se debruçam sobre o estudo da fotografia como por outros, que olham e se aprofundam na cultura midiática contemporânea.

Construção e desconstrução ideológica

Jorge Pedro Sousa (2000:14) lembra que a história do fotojornalismo sempre foi conturbada, constituindo-se em “uma história de oposições entre a busca de objetividade e a assunção da subjetividade e do ponto de vista, entre realismo e outras formas de expressão, entre o matizado e o contraste, entre o valor noticioso e a estética”. Essas discussões exacerbaram-se durante todo o século XX, colocando em questão, justamente, a dualidade entre objetividade e subjetividade narrativa, entre credibilidade e confiança, tendo se acirrado com o surgimento da linguagem digital, que levantou suspeita sobre o “verismo” da imagem jornalística.
As discussões, então, passaram a ser feitas exclusivamente no campo da ética. A fotografia, tida como uma máquina de criar certezas (especialmente na área jornalística), começa a ser repensada e vista como resultado do querer de um autor que aponta a câmara para determinado objeto e situação e o registra com a intenção de criar uma história:

Como toda mídia, a fotografia é um reflexo das sociedades que a criaram e adotaram. Pode promover mudanças sociais e pessoais de maneira óbvia ou sutil. Trata-se de um processo dialético, em evolução e, ainda por cima, inconsciente, que abre novas possibilidades e nega outras (Ritchin, 2012:3).

Assim, o que até o advento do digital se aceitava como testemunha ocular, por conta de uma filosofia positivista do século XIX (época da invenção da fotografia), passa a ser repensado, questionado e, muitas vezes, ressignificado. A fotografia, afirma Souza (2000:24), “nasceu no ambiente positivista do século XIX, beneficiando-se de descobertas e inventos anteriores, como as câmaras escura e clara, e da vontade de se encontrar um meio que permitisse a reprodução mecânica da realidade visual”.
A noção de credibilidade fotográfica foi criada pela ideologia positivista, que muito bem servia à sociedade burguesa da época. Esta necessitava de um aparato científico para se firmar no mundo:

Enquanto as imagens tradicionais estavam ligadas a uma necessidade de decifração por sua característica mágica, as técnicas aparentemente não precisam ser decifradas, já que seu significado se imprime de forma automática sobre a superfície como uma impressão digital (Flusser, 2002:13).

Dessa maneira, a partir da crença de uma imagem criada sem a interferência do homem, constituindo apenas um aspecto icônico da realidade, ou como foi definido por Philippe Dubois (1994), um “espelho do real”, durante quase todo o século XX a imagem na imprensa não carecia de decodificação ou análise. “O espelho vai transformar-se na metáfora mais explosiva da fotografia-documento: uma imagem perfeitamente analógica, totalmente confiável, absolutamente infalsificável, porque automática, sem homem, sem forma, sem qualidade” (Rouille, 2009:66).
O que queríamos ver ou deveríamos saber estava ali estampado, não havendo muito mais a ser dito. Alem disso, por causa dessa crença na imagem jornalística como mimese do mundo, criou-se também a ideia de que o fotojornalismo não tinha estética, que o conteúdo prevalecia sobre a forma. Isso também contribuiu para a criação do mito da “verdade documental” da imagem impressa.

As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sempre tiveram na imagem fotográfica um poderoso instrumento para veiculação das idéias e da conseqüente formação e manipulação da opinião pública, particularmente, a partir do momento em que os avanços tecnológicos da indústria gráfica possibilitaram a multiplicação massiva de imagens através dos meios de informação e divulgação. E tal manipulação tem sido possível justamente em função da mencionada credibilidade que as imagens têm junto à massa, para quem seus conteúdos são aceitos e assimilados como expressão da verdade (Kossoy, 1999:20).

Mas o tempo passou. Com a linguagem digital surgiu uma nova maneira de ver e perceber a fotografia, uma conscientização maior de que ela não é apenas o resultado de um processo que não necessita da interferência humana, mas uma criação de imagens a partir de narrativas ou representações sociais construídas através do tempo. É como afirma Ritchin (2012: 51):“A linguagem digital desestabiliza a fotografia como fiel registro do visível, a sua nova flexibilidade lhe permite novas aproximações que talvez no passado tenham sido liquidadas apressadamente ou, quem sabe, consideradas impossíveis”.
Dessa maneira, muda a nossa percepção: do “isso aconteceu” para “isso foi encenado”, segundo François Soulages (2010:65). Nessa lógica, é ainda o filósofo francês que nos ajudar a refletir: “A foto é um vestígio. Mas um vestígio de quê?”, ele se pergunta.
A indagação leva a uma reflexão sobre o fotojornalismo e as polêmicas que o acompanham desde o nascimento do fotojornalismo moderno, a partir dos anos 1930. Isso tem a ver não só com a explosão das revistas ilustradas – especialmente na Alemanha, na década de 1920 –, mas também com a tecnologia que se transforma: câmaras de pequeno formato, como a Ermanox e a Leica, permitem mais mobilidade ao fotojornalista, substituindo a estética da pose pela estética do movimento, do instantâneo.
É nessa época, também, que o fotografo húngaro Lazlo Moholy-Nagy, pertencente à escola da Bauhaus, afirmou: “O analfabeto do futuro não será quem não souber ler e escrever, mas quem não souber fotografar”.O texto de Walter Benjamin,“A pequena história da fotografia”, escrito em 1931, termina com essa frase.
Mesmo assim, estabeleceu-se um hiato no pensamento sobre o fotojornalismo até meados dos anos 1980, quando a semiótica nos trouxe valiosas contribuições para começarmos a pensar a fotografia como um texto cultural:

A fotografia é um traço visível, reproduzido por um processo mecânico e psicoquímico, de um universo pré-existente, mas não adquire significado senão por um jogo dialético entre um produtor e um espectador. Uma imagem é uma manifestação de algo? É reflexo do mundo ou cria uma imagem de mundo? (Vilches, 1984:14).

O valor ficcional das imagens fotográficas é hoje reconhecido. Questionamentos a esse respeito estão há tempo ultrapassados, não fazem mais sentido algum: “Assim como os demais documentos, elas são plenas de ambigüidades, portadoras de significados não explícitos e de omissões pensadas, calculadas, que aguardam pela competente decifração” (Kossoy, 1999:22).
Portanto, embora essa compreensão remonte ao final do século XX, a fotografia, em especial a fotografia de imprensa ou o fotojornalismo, nunca foi, de fato, “a restituição do objeto-mundo, mas a produção de imagens que interpretam alguns fenômenos visíveis e fotografáveis, de um mundo particular existente num espaço e numa história” (Soulages, 2010:34).
Assim, se durante 80 anos de fotojornalismo procuramos vendê-lo, entendê-lo e interpretá-lo como algo diferente de uma visão de mundo ou ponto de vista de alguém, já não é mais possível fazer isso hoje, com o desenvolvimento da imagem digital. Esta não deve nem pode ser subestimada, como se se tratasse apenas de uma mudança de suporte: leitura rápida e superficial.
Ao contrário disso, o digital precisa ser pensado como uma transformação cultural na área perceptiva, afetando, portanto, o fotojornalismo. O ato de fazer a foto não mudou, mas a maneira de perceber e ver o mundo, sim. Nossa percepção foi alterada por meio da possibilidade de um tempo presente eterno, de um “tempo real”. Da falsa impressão de que estamos acompanhando os fatos só porque esses aparecem à nossa frente à medida que estão se desenvolvendo, causando a perspectiva equivocada de conhecimento e de compartilhamento de notícias e fatos:

…dentro de um contexto digital, a mídia vai nos transformar profundamente e permanentemente em um nível fundamental: a nossa maneira de ver o mundo, a nossa concepção de alma, de arte, a nossa percepção da possibilidade. Nos apressamos a reinventar a mídia seguindo uma fórmula que é absolutamente do markenting, “a revolução digital”, e não ousamos admitir que, na verdade, nessa época assim tumultuada, estamos nos reinventando a nós mesmos (Ritchin, 2012: XV).

A construção imagética se transformou, e o fotojornalismo também: não mais uma janela para o mundo, como se acreditava no século XIX, nem tampouco uma janela com aparas, como afirmava Flusser, e, sim, um mosaico que pode ser reconfigurado e repensado de formas diversas, de modo a criar variadas formas perceptivas e de interpretação dos fatos, das notícias. Não mais uma amostra, mas uma possibilidade entre tantas, ou olhares diferenciados que narram uma mesma história. Nesse contexto, abrem-se novas possibilidades criativas para os fotojornalistas, sem se deixar de lado a ética narrativa, do fato, da informação de interesse público.

Cultura da mídia e entretenimento

Segundo Giuseppe Mininni (2008:60), “para o homem moderno (e mais ainda o pós-moderno) a mídia representa o que a Igreja representava para o homem medieval: um horizonte da compreensão total do mundo e de si mesmo”. O que dizer, então, do papel da fotografia, e mais ainda da fotografia de imprensa, que ainda hoje é vista com idolatria absoluta, como portadora de significados inquestionáveis?
Qual o papel da fotografia jornalística na atualidade? Como ela pode se isolar e ser vista num oceano de imagens diárias das mais diversas estéticas e vertentes? Segundo observadores do mundo digital, mais especificamente da fotografia digital, a partir de 2012 produziremos a cada ano mais de meio trilhão de fotografias (Ritchin, 2012:9).

Num mundo onde se perdeu a fronteira entre o público e o privado e em que a comunicação, de forma quase imperiosa, se dá por meio das imagens, “a mídia é a reveladora e ao mesmo tempo a construtora do star system” (Mininni, 2008:64).
É como se estivéssemos revivendo o mito da caverna de Platão: impossibilitados de ver as coisas por nós mesmos, acabamos por acreditar e interagir com sombras projetadas nas paredes (hoje em dia nas telas): “Grande parte do que nós sabemos do mundo, da cultura a que pertencemos e de nós mesmos nos é projetada pela luz tênue de uma tela qualquer (cinema, televisão, computador)” (Mininni, 2008:112). Na mesma linha, Ritchin (2012: XIV). adverte:

Um tempo se acreditou que o nosso planeta era chato, mas Colombo não caiu. Agora, o mundo é novamente plano na tela de um televisor ou de um computador, mas nós também não caímos, entramos nele e ele entra em nós. Transformamo-nos em usuários, mas é ele que nos usa. Enquanto isso, o nosso mundo, aquele que hoje chamamos de real life, se torna mera referencia.

Dessa maneira, o sentido da fotografia, do fazer e do compreender a imagem jornalística, também se alterou, juntamente com uma transformação da percepção da imagem. A fotografia passa a ser vista e reconhecida como cultura, passa a fazer parte do mundo da cultura. Como lembra André Rouillé (2009:73), “a fotografia não representa exatamente uma coisa preexistente, ela produz uma imagem no decorrer de um processo que coloca a coisa em contato, e em variações, com outros elementos materiais e imateriais”.
Não fotografamos produzindo um mero registro. No ato de fotografar, projetamos ideias, situações e representações sociais que ficam à espera de uma decodificação apropriada. A mensagem não está na superfície, mas nas inúmeras camadas que devem ser desveladas por olhares atentos. Como afirma Vilches(1984:14): “uma imagem tem significado porque existem pessoas que procuram este significado. Uma imagem por si só não significa nada. Quando deixamos de interrogar a imagem ela fica restrita às leis, normas e estereótipos”.

Em uma sociedade onde o entretenimento prevalece, a imagem é concebida como um evento, como um factóide, e é dessa maneira que ela se apresenta: dramática, saturada, plena de informações. Registramos fatos, mas nos esquecemos de produzir ideias. Acaba não existindo mais reflexão sobre o que construímos intelectualmente, e tudo é recebido e retransmitido como se não houvesse necessidade de filtros. “Aparentemente, nada mais simples nem mais natural do que olhar e compreender uma fotografia, em geral, e de uma fotografia de imprensa, em particular, feita como é para captar o olhar do espectador e ser interpretada à primeira vista” (Martine Joly 2003:94).
Perceber uma imagem é, antes de mais nada, procurar contextualizá-la em sua época. É um desejo de ver, de ler. Ainda nos referenciado a Martine Joly (2003:13) “Mas se ‘interpretar’é ‘atribuir um significado’, é também ‘atribuir um significado claro a algo obscuro’, ou seja, a interpretação de mensagens, e das mensagens visuais ou audiovisuais em particular, é também decifrar, explicar a fim de compreender e/ou fazer compreender”.
Somos instigados, então, a deixar a nossa área de conforto para nos confrontarmos com a idéia de que a imagem jornalística é, ela também, produção de um sujeito inserido em um determinado contexto sócio-histórico, e será com esse olhar que ele irá representar o mundo que o circunda. Não se trata de uma forma mecânica de registro, mas de uma construção deliberada, que pretende informar ou apontar algo que se está de alguma maneira vivenciando:

O fato de o homem ter produzido imagens no mundo inteiro, desde a pré-história até nossos dias, faz com que acreditemos sermos capazes de reconhecer uma imagem figurativa em qualquer contexto histórico e cultural. No entanto, deduzir que a leitura da imagem é universal revela confusão e desconhecimento (Martine Joly 1994:42)

Assim, uma fotografia de imprensa, que aparentemente teria uma função descritiva e denotativa, acaba por situar-se entre o referencial e o cognitivo. Ou seja, devemos pensar na diferença entra a subjetividade narrativa e a pretensa (ou falsa) ideia da objetividade fotográfica. A fotografia jornalística é, antes de mais nada, construção de um sujeito pensante inserido em um contexto sócio-histórico e ele constrói essa imagem a partir de seu repertório. Como afirma Alberto Manguel (2000:28):

Construímos nossa narrativa por meio de ecos de outras narrativas, por meio da ilusão do auto-reflexo, por meio do conhecimento técnico e histórico, por meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminação, dos escrúpulos, da ingenuidade, da compaixão, do engenho. Nenhuma narrativa suscitada por uma imagem é definitiva ou exclusiva, e as medidas para aferir a sua justeza variam segundo as mesmas circunstâncias que dão origem à própria narrativa.

As narrativas contemporâneas são fragmentadas e construídas por meio das imagens midiáticas. “Nos dias de hoje as imagens se tornam cada vez mais fiéis (mostram como nos comportamos efetivamente) e nós nos tornamos sempre mais fiéis às imagens (comportamo-nos efetivamente conforme o programa)”, como afirma Flusser (2008:61).
As imagens nos ensinam a ver. São representações visuais que ao mesmo tempo constroem nossa realidade, criam nossa memória e nossa maneira de nos comportarmos. Ao repetir clichês ou forçar entendimentos estereotipados, as imagens acabam sendo percebidas como um espelho da realidade.

Dentre as diferentes modalidades de informação transmitidas pela mídia, as imagens, em geral, constituem um dos sustentáculos da memória; e podem, também, ao mesmo tempo, constituírem instrumento de manipulação política e ideológica. Tal como as palavras, as imagens são controladas e censuradas; prestam-se como “provas” de subversão, mas são também instrumento de poder para aqueles que detêm, num dado momento, o controle da informação. As fontes iconográficas – produzidas através de diferentes formas de expressão gráfica, como os desenhos, pinturas, gravuras, litografias e fotografias – carregam em si informações sobre certos fatos e sobre a mentalidade de uma época (Kossoy, 2007:104).

A mídia se faz criadora de hábitos numa sociedade onde o efêmero se torna protagonista, onde imagens são substituídas com uma velocidade impressionante, onde a vontade não é a da calma do olhar, mas a de uma fruição estética imediata, muitas vezes baseada no impacto. São imagens que a princípio nos deslumbram como fogos de artifício, mas que não deixam rastros ao apagar das luzes. Imagens que nos povoam, mas não nos habitam, não deixam marcas.
A linguagem, nesse campo, se achata, nivelando as informações. Apresentam-se vestígios, e não presenças. As imagens que se sucedem rapidamente acabam por limitar nossos sentidos: temos acesso à aparência, mas não nos aprofundamos. Apesar de vivermos num mundo virtual, que a cada momento nos apresenta possibilidades de criação imagética, por equivoco ou tradição, muitos continuam acreditando na imagem jornalística como portadora de valores inquestionáveis. A este respeito Todd Gitlin, professor de cultura, jornalismo e sociologia na Universidade de Nova York, ao escrever sobre os poucos esforços em nos dedicarmos ao estudo das imagens na vida cotidiana escreve que:

Gente que por anos se dedicou a atacar, dissecar, desconstruir e, além disso, olhar de traves as imagens das mídias, gente que jamais seria flagrada dizendo em voz alta que os noticiários (para usar a metáfora predileta das próprias mídias) “espelham” a realidade, que sabe muito bem que as redes formam e promovem ideias sobre o mundo, viu uma imagem nas mídias e supôs que não era uma construção, não era uma versão, mas a verdade (Gitlin, 2001:171).

A nova era do fotojornalismo

Neste cenário de transformação da visualidade e compreensão da imagem o próprio papel do fotografo também se altera. Nessa nova maneira de nos acercamos do fotojornalismo eles se assumem cada vez mais autores e se colocam de forma imperativa na imagem. É preciso compreender que, como explica André Rouillé (2009), a fotografia-registro passa a ser a fotografia-expressão. Se antes o fotógrafo era quase invisível na imagem hoje ele está cada vez mais presente. Na proliferação da produção imagética os fatos diários são muitas vezes ilustrados por imagens dos leitores que estavam no lugar exato, no momento exato. Cabe ao fotojornalista a narrativa de história mais longas, mais aprofundadas.

Em entrevista à autora, por telefone, diretamente da sede do World Press Photo, na Holanda, Michiel Munneke afirmou o seguinte:

Os leitores comuns ainda gostam do clichê, se sentem confortáveis nele. Cada vez mais os acontecimentos serão contados por eles, por meio de fotos feitas com o celular, para os fotojornalistas vai sobrar sua visão pessoal. É cada vez mais importante a assinatura do fotógrafo, seus pequenos contos, suas narrativas.

Fotógrafos voltam suas lentes para assuntos fundamentais, e que precisam ser discutidos, cortam cenas, iluminam situações e escrevem textos imagéticos para narrar o que estão vendo ou assistindo. Usam da credibilidade que a fotografia jornalística ainda detém para provocarem uma discussão sobre determinadas situações:

Certa feita, Marshal McLuhan observou: os peixes não sabem absolutamente nada sobre a água. O peixe não tem noção de que a água é molhada porque não tem a experiência do seco. Uma vez que estamos imersos na mídia, apesar de todas as palavras, imagens e sons, como podemos saber de que maneira ela age sobre nós? (Ritchin, 2012: XIII).

Dessa maneira, embora o digital nos tenha trazido o conhecimento de que uma imagem fotográfica traduz a construção de um discurso; embora tenha trazido à baila a possibilidade de manipulação da imagem; embora tenha nos mostrado que, como qualquer discurso, não passa da opinião de alguém, ainda continuamos a acreditar na fotografia jornalística como portadora de uma “verdade”.
Devemos, pois, pensar sobre uma noção que não conseguiu se alterar efetivamente com o tempo. Qual é a função de uma imagem jornalística na contemporaneidade? Como trazer informações, num mar de imagens que se alarga cada vez mais, feito manchas de óleo sobre as águas? Como discernir o que vale a pena ver, observar e decodificar? Precisamos lidar com novas significações novas maneiras de nos apropriarmos do mundo.

O digital tem a ver com os significados codificados, dados com os quais não podemos brincar, abstratos de sua fonte; o analógico emana o vento, os bosques e as árvores. Parece ser um mundo tangível. O digital se baseia numa arquitetura de abstrações que se repetem ao infinito, onde cópia e original são uma só coisa; o analógico envelhece, se decompõe, se torna menor a cada geração, se transforma em seu aspecto. No mundo analógico, a fotografia da fotografia é sempre uma segunda geração, desfocada, não é igual; a cópia digital da fotografia digital não existe, portanto a questão de original perde seu significado (Ritchin, 2012:6).

Um mundo que precisa ser ressignificado. Como dizia o filósofo francês Jean Baudrillard, vivemos num mundo de modelos, de um real sem origem. A fotografia jornalística é a que mais sofre com estas modificações. Está em jogo toda uma situação de credibilidade, de “verdade” de crença.
Essas questões são a tônica da discussão do“novo” fotojornalismo. A desconfiança que nasce com o advento do digital não é por nada nociva; pelo contrario, começa a criar uma cultura do entendimento de uma alfabetização visual. A descrença é bem-vinda. Coloca o autor e o espectador em pé de igualdade. Quem fez a foto? O que quer dizer? “O ceticismo, obviamente, pode ser vantajoso. A fotografia pode ter a oportunidade de amadurecer como linguagem, sem ter necessariamente sua base na funcionalidade, mas se assumir como linguagem” (Ritchin, 2012:25)
Dessa forma, teremos saído da critica estruturalista e pós-estruturalista, que nos ensinou a desconfiar das imagens. Para entender o fotojornalismo atual é necessário confiar no que esses jornalistas – sim, antes de mais nada o fotógrafo de imprensa é um jornalista – estão tentando nos dizer.
A crítica americana Susie Linfield, em seu livro The cruel radiance (2011), afirma que é por meio da fotografia que podemos explicar a sociedade e suas decepções. Isso nos lembra Walter Benjamin, que em “A pequena história da fotografia” (1931) dizia que a fotografia criou uma nova forma de ver e trouxe para a visibilidade milhares de pessoas comuns. E são essas pessoas que estão na mira da maior parte dos fotojornalistas.
Porém, essa miríade de imagens nos afastou, como cidadãos, de perceber a fotografia jornalística como uma maneira de nos aproximar do mundo quando não é possível nossa presença. Susie Linfield afirma que, depois da invenção da fotografia, não é mais possível argumentar com a ignorância, com o desconhecimento, com o dizer “eu não sabia”. Afirma também que as fotos estão lá para nos contar “como isso foi”, para nos dizer “isso não pode acontecer”.
O que fica na pós-modernidade, ou hipermodernidade, ou hiper-realidade, é que a função do fotojornalismo não mudou. Ele segue como nossa testemunha ocular, mesmo que, agora, já não seja mais visto e aceito como a “verdade absoluta”. Sem dúvida, no entanto, ainda constitui o nosso olho nos lugares aonde não podemos ir. A função da imagem jornalística é trazer para as páginas de jornais e revistas as histórias que merecem e que, acima de tudo, precisam ser contadas.
O fotojornalismo, embora ressignificado, não perdeu seu valor de contador de histórias, mas acima de tudo de provocar debate, discussões.
François Soulages (2010:37) cita uma frase de Umberto Eco retirada do texto “Verso una Civilta della Visione?” bastante pertinente para a contemporaneidade: “uma civilização democrática só se salvará se fizer da linguagem da imagem uma provocação à reflexão e não um convite à hipnose”.

Referências

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994.
FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar. São Paulo, Martins Fontes, 2011
FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Annablume, 2011.
GITLIN, Todd. Mídias sem limite. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, Papirus Editora, 1994
JOLY, Martine. A Imagem e sua interpretação.Lisboa, Edições 70, 2003
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
LINFIELD, Susie. The cruel radiance.Chicago, University of Chicago Press, 2010.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MININNI,Giuseppe. Psicologia cultural da mídia. São Paulo: Edições SESC/SP, 2008.
RITCHIN, Fred. Dopo la fotografia. Torino: Einaudi, 2012.
ROUILLÉ, André. A fotografia: do documento à arte contemporânea. São Paulo: Editora Senac, 2009.
SOULAGES, François. Estética da fotografia: perda e permanência. São Paulo: Editora Senac, 2010.
VILCHES, Lorenzo. La lectura de la imagen: prensa, cine, television. BARCELONA, Ediciones Paidós Ibérica, 1984
SOUZA, Jorge Pedro. Uma história critica do fotojornalismo ocidental. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000.

Dos elfos aos selfies

Este texto foi publicado em 2013 no livro: “Comunicação, Entretenimento e Imagem”, Editora Plêiade.

Introdução

Silenciosamente eles começaram a surgir nas redes socias, nas conversas, nos debates e proliferaram como cogumelos após uma forte chuva de verão. Um dos fenômenos do século XXI é sem dúvida o selfie que, segundo o Oxford Dictionary (2013) é uma fotografia informal, um autorretrato feito por meio de um celular ou de uma webcam e imediatamente (com)partilhada nas redes sociais. Aliás, segundo notícia publicada por Jessie Wender, no blog Photo Booth, da revista New Yorker em fevereiro, o Oxford Dictionary definiu a palavra selfie, como a palavra do ano de 2013. ( http://www.newyorker.com/online/blogs/photobooth/2014/02/seeing-themselves-photographers-self-portraits.html#slide_ss_0=13). Um fenômeno que para mim não faz o mínimo sentido visto que, desde sempre, representações pictórias e imagéticas privilegiaram o retrato e mesmo o autorretrato. Livros de arte e de fotografia sempre trataram deste assunto e muitos tentaram explicá-lo tanto do ponto de vista sociológico, como psicológico. E não conheço fotógrafo que não tenha feito seu autorretrato.

Há quatro anos desenvolvi um curso que ministrei no MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e discuti em vários cursos e palestras do Brasil.: “Fotografia e Simbologia”. Nele por meio de figuras mitológicas e da literatura tentava compreender e analisar os mítos, símbolos e arquétipos da sociedade contemporânea tendo sempre como pano de fundo a imagem, em especial a fotográfica, o retrato e o autorretrato. Embora o curso seja bastante recente há tempos o tema me intrigava (mito e fotografia). Não à toa desenvolvi meu mestrado e doutorado tendo como base a psicologia social e no pós-doutorado estou desenvolvendo também um estudo sobre a mitologia e a construção identidária do personagem político, mais precisamente dos presidentes do Brasil. Mas esta é uma outra história.

A primeira vez que ouvi a palavra selfie– e não poderia ser diferente – foi da boca de uma aluna do primeiro ano de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. O interessante é que ela estava mostrando um autorretrato de um fotógrafo chinês, Li Zhensheng, feito na China comunista nos anos 1960.

A partir daquele momento resolvi me aprofundar nesta história para tentar entender como um modelo de autorrepresentação tão arcaíco do nada se transformaria na coqueluche da contemporaneidade. Entender o simbólico por trás desta imagem e seus sentidos hoje. Ou nos dizeres do psicólogo Carl G. Jung: “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além de seu significado manifesto e imediato.”(1964, p. 20).

Discussão que obviamente não é nova. A mitologia e a literatura – como já afirmamos – sempre se deteve e discutiu esta questão. Como não lembrar do mito de Narciso que foi condenado a viver a ânsia de um amor irrealizado ao se apaixonar por sua própria imagem. Dias e noites ficou contemplando seu retrato refletido na água sem contudo conseguir alcança-lo. Ou ainda se pensarmos no célebre livro do escritor irlandês Oscar Wilde (1884-1900), O Retrato de Dorian Gray (1890) no qual o retratado não envelhece nunca, mas é o quadro que com o tempo adquire as rugas que deveriam estar em seu rosto. Este desejo se torna para Dorian Gray, uma terrível realidade. Escravo de um ideal absurdo – o da eterna juventude – faz com que a arte se confunda com a vida cotidiana.

O que dizer então dos milhares de selfies que circulam pelas redes sociais? Pessoas anônimas e nem tanto. Um fenômeno que se alastra em progressão geométrica.

Críticado foi o selfie de Barak Obama durante o enterro do líder sul-africano Nelson Mandela, em dezembro de 2013. O autorretrato foi tirado junto com os primeiros-ministros David Cameron, do Reino Unido e Helle Thorning Shmidt, da Dinamarca. Duramente criticado pela mídia mundial, o presidente norte-americano se meteu em outra confusão em abril deste ano ao se deixar retratar ao lado do jogador de beisebol do Boston Red Sox, David Ortiz. A imagem foi utilizada numa propaganda da Samsung e considerada uma jogada de marketing. Resultado: ao visitar o presidente norte-americano deixe seu celular no bolso. Outro selfie com bastante repercussão foi o da atriz Ellen De Generes durante a entrega do Oscar neste ano. Na verdade a foto foi feita pelo ator Bradley Cooper e reuniu várias estrelas de Hollywood. Constatou-se depois que, a foto foi uma propaganda, de novo, para a Samsung.

Sempre que ouço este palavra, não sei porque, me vêem à mente os elfos que segundo a mitologia nórdica eram seres de luz. Semi-deuses jovens e belos. E me parece que é desta forma que as pessoas que publicam seus selfies se vêem ou gostariam de serem vistos. Pessoas iluminadas e luminosas. Nem sempre é assim, pois na maioria das vezes são imagens desprovidas de composição, conceitos e cuidados estéticos. E o resultado deixa muito a desejar…..

É portanto neste cenário que pretendo discutir a função de representação, cenário e ficção do autorretratou, ou selfie dentro de uma sociedade onde o entretenimento é a tônica da cultura e do conhecimento.

O retrato, o autorretrato e a representação de si

O retrato é fascinante. Talvez a mais sedutora e difícil linguagem tanto da pintura como da fotografia. Síntese do encontro de olhares entre um produtor de imagens e um ser que se deixa “imortalizar” pelas pinceladas ou pelas lentes. Uma troca entre objetividade e subjetividade e a vontade de ver e ser visto. Existe uma atitude social e política no ato de retratar e de ser retratado. Mas diferentemente do retrato pictório onde a imaginação e o gesto dos pintores muitas vezes são mais valorizados que o sujeito representado, o retrato fotográfico nascido nos primórdios da fotografia é utilizado como forma ideológica pela burguesia da segunda metade do século XIX com intuíto de se colocar perante a sociedade da época e de criar sua própria identidade. Afinal, nascida no meio de uma filosofia positivista, a fotografia se encaixou muito bem na ideia de olhar frio e imparcial tão caro aos pensadores da época: “só acredito no que meu olho vê”:

Representação honorífica do eu burguês, o retrato fotográfico populariza e transforma uma

função tradicional, ao subverter os privilégios inerentes ao retrato pictórico, Mas o retrato

fotográfico faz bem mais. Contribui para a afirmação moderna do indivíduo, na me

dida em que participa da configuração de sua identidade como identidade social.

Todo retrato é simultaneamente um ato social e um ato de sociabilidade: nos diver

sos momentos de sua história obedece a determinadas normas de representação que

rege mas modalidades de figuração do modelo, a ostentação que ele fazde si mesmo

e as múltiplas percepções simbólicas suscitadas non intercâmbio social. O modelo

oferece à objetiva não apenas seu corpo, mas igualmente sua maneira de conceber o

espaço material e social, inserindo-se numa rede de relações complexas, das quais o

retrato è um dos emblemas mais significantes (Fabris, 2004, p.38-39).

Utilizado com fins sempre “nobres”, valorizado como expressão , descrito e relatado tanto por escritores como por filosófos o retrato nos suscita múltiplas indagações a respeito de seu status. É história ou ficção? Realidade ou invenção? Identidade ou alteridade? : “A fotografia constrói uma identidade social, uma identidade padronizada que desafia, não raro, o conceito de individualidade, permitindo forjar as mais variadas tipologias”(Fabris, 2004, p.15). Quando falamos ou pensamos em retratos afinal, estamos nos referindo extamente a que? Muitas vezes nos sentimos desafiados pela esfíngie de Tebas: “decifra-me ou te devoro”. É ainda Fabris que nos recorda que para o poeta francês Chales Baudelaire (1821-1867) a imaginação é a parte fundamental de um retrato: “o poeta atribui ao retratista uma capaciade divinatória, uma vez que é sua tarefa adivinhar o que se esconde além de captar o que se deixa ver”(Fabris, p. 21). Já para o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940), o retrato se insere na área do romance: “é sobretudo produto da imaginação, mas nem por isso menos fiel à personalidade do modelo”(Fabris, p.21). Nestes quase 200 anos, desde a invenção da fotografia, o retrato sempre esteve em alta e mereceu análises diversas. Por isso o espanto com a propagação dos selfies e da ideia que está por trás – se é que existe realmente algum conceito ou reflexão – da importância do autorretrato nos dias de hoje.

É preciso refletir que não é de hoje, obviamente este culto à imagem e ao retrato. O filóso

fo, checo Vilem Flusser (1920-1991) em seu livro Filosofia da Caixa Preta (1983) nos lembra do aspecto mágico da imagem que antecede a imagem técnica e do aparente desaparecimento da necessidade de uma decodificação de uma imagem técnica (fotografia, cinema) já que seu significado se imprime de forma automática sobre a superfície como uma impressão digital: “no momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade (Flusser, 1983, p. 73). Buscamos semelhanças, lembranças quando olhamos para um retrato fotográfico e não necessariamente estética artística ou originalidade, mas sim desvendar o que aquele rosto significa para nós:

Ao analisar a relação da câmara fotográfica com o rosto humano, Baudrillard faz do retrato um ato

de desfiguração e despojamento do caráter do modelo. Confrontada com a encenação que o indivi

duo faz de si, a objetiva não consegue idealizá-lo ou transfigurá-lo como imagem: captar a   seme

lhança não significa captar a máscara, a alteralidade secreta de que todo ser é portador. O que

Baudrillard demanda à fotografia è justamente isso: não tanto “ procurar a identidade por trás das

aparências” quanto “por trás da identidade faz surgir a máscara, a figura”daquilo que assombra o

ser humano e o desvia de sua identidade. (Fabris, 2004, p. 75)

O fascínio do retrato e do autorretrato é exatamente este: seu caráter ficcional (aliás como de toda e qualquer fotografia), sua possibilidade da criação, da pose, a construção de inúmeros personagens que são encenados a cada fotografia uma forma, como lembra Annateresa Fabris de “escamotear de vez a existência do sujeito original”. Nós estamos o tempo todo ritualizando e recriando boa parte da vida cotidiana. Os papéis se alternam e a fotografia acaba por se tornar um dos meios utilizados para firmar esta ideia e dar concretude ao que estamos vendo. Vemos mediados pelo nosso conhecimento, pela nossa construção de mundo a partir das representações. E as representações refletem ou imitam a realidade social. O professor e pesquisador francês François Soulages suscita uma polêmica interessante sobre este assunto ao nos indagar se o retratista é um fotógrafo ou um encenador fotográfico. Levanta a possibilidade da teatralização fotográfica e a mudança de conceito do “isso existiu” para o “isso foi encenado”: “será que o retrato é um gênero que dá o objeto – um (ou vários) ser (es) humano (s) – a ser fotografado ou uma prática que produz uma aparência fotográfica de um fenômeno visível?” (2010, p. 65-66). E ele mesmo reflete em seguida: “o retrato fotográfico é pleno de tensões e contradições próximas: será que ele se distingue, de fato, de uma fotografia, que seria, como o quadro, da competência da arte? Talvez seja apenas uma simples constatação?” (2010, p.66).

Se for constatação é possível analisarmos os selfies da contemporaneidade sob a óptica da sociedade do entretenimento, o uma civilização do espetáculo como a definiu o escritor peruano Mario Vargas Llosa (2013). Em uma sociedade onde você vale a partir do momento em que se torna visível a rápida disseminação de uma imagem via redes sociais permite uma imediatez na integração do mundo do consumo, do lazer e da “pseudo” saída do anonimato. Se cada período tem um olho e uma representação, sem dúvida, a do século XXI é a da visibilidade. Não importa em que medida ou o que fazemos para que isso acontença. Relações estéticas que nos dão a impressão de pertencimento quando na verdade só nos oferecem vestígios:

O que dizer da civilização do espetáculo? É a civilização de um mundo onde o primeiro

lugar na tabela de valores vigente é ocupada pelo entretenimento, onde divertir-se, esca

par do tédio, è a paixão universal. Esse ideal de vida é perfeitamente legitimo sem dúvi

  1. Só um puritano fanático poderia reprovar os membros de uma sociedade que quise

sem dar descontração, relaxamento, humor e diversão a vidas geralmente enquadradas

em rotinas deprimentes e às vezes imbecilizantes. Mas transformar em valor supremo

essa propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas: banalização da

cultura, generalização da frivolidade […] (Vargas Llosa, 2013, p. 30).

No caso da fotografia, devemos lembrar que a construção de uma imagem nunca é cópia de um mundo externo, mas a concretização de um imaginário de um sujeito que está inserido numa sociedade, numa cultura, num determinado momento histórico. Imagens que passam por representações sociais.

Representação e Imagem Contemporânea

                                     O psicólogo social Serge Moscovici parte do estudo das representações sociais para compreender como e porque os homens agem e pensam de determinada maneira afirmando o caráter histórico da consciência. Ou seja, de que maneira o sujeito se apresenta e representa por meio das imagens que constrói ao querer conhecer e se apropriar do mundo.

A partir do momento em que a imagem se torna uma das principais formas de conhecimento e de transmissão deste mesmo conhecimento deixamos de viver diretamente nossas experiências e passamos a vivenciá-las por meio das representações: “tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. (Debord, 1997, p.13). No nosso caso, hoje, o conhecimento ou reconhecimento passa através do selfie:

Ao refletir sobre a identidade estampada nos retratos fotográficos, Roland Barthes faz

referência a uma identidade imprecisa, se não imaginária, frequentemente próxima de

mitos e estereótipos, a ponto de permitir falar em semelhança mesmo diante de modelos

desconhecidos. O questionamento de identidade do sujeito fotografado levao autor a uma

consatação radical: o indivíduo assemelha-se ao infinito a outras imagens de si mesmo, é

uma cópia de uma cópia, não importa se real ou mental. (Fabris, 2004, p. 115)

    

Passamos, portanto, do momento no qual o retrato e o autorretrato significavam mito mais uma descoberta de identidade ou de afirmação no mundo, uma maneira de nos colocarmos perante a sociedade como seres únicos para o selfie, uma mania que – se de alguma maniera – também nos insere dentro de um contexto deixa de lado a unicidade para parecermos todos iguais. As mesmas poses, os mesmos sorrisos criando uma ruptura entre o sujeito, o eu, e imagem que se configura cada vez mais como pose. Uma norma imposta onde a aparente espontâneidade e rapidez com a qual as imagens são divulgadas pelas redes sociais nos leva a acreditar numa autenticidade do retrato e retratado. Uma sociedade narcícisa, onde pouco se produz e muito se reproduz, os selfies, caracterizam como diria Umberto Eco (1984): “alegoria da sociedade de consumo” (p.60), um falso individualismo focado na realização rápida do desejo de ser visto, alcançar visibilidade e portanto passar a existir numa sociedade onde imagem e entretenimento são indissociáveis:

As formas desse neoindividualismo centrado na primazia da realização de si são

incontáveis. Paralelamente à autonomia subjetiva, ao hedonismo e ao psicologismo

desenvolveu-se uma nova relação com o corpo: obsessão com a saúde, culto do esporte

boa forma, magreza,cuidados de beelza, cirurgia estética….manifestações de uma socie

dade narcícica (Lipovestky, Serroy, 2011, p. 48)

Lembramos também que não existe um olhar inocente e que a fotografia é sempre a construção de uma representação. Como nos lembra Boris Kossoy (2007) toda fotografia é criação, “um testemunho que se materializa a partir de um processo de criação, isto é, construção. Nessa construção reside a estética de representação” (p. 54). No mundo estetizado no qual vivemos a representação passa pela imediatez de um fato e de uma situação. A fotografia de hoje, o autorretrato não se pretende mais heróico, mas uma imagem que brinca com a banalidade. Provavelmente os selfies logo serão substituídos por outra forma representativa, mas nestas últimas décadas e desta forma que nos vemos e queremos ser vistos.

Referências:

 

DEBORD, GUY. Sociedade do Espetáculo.

ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. 9. Edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.

JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. 11. Edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992

KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo, Ateliê Editorial, 2007

LIPOVESTKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. 2. Edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2011

SOULAGES, François. Estética da Fotografia: perda e permanência. São Paulo, Editora Senac, 2010

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Rio de Janeiro, Objetiva, 2013.

 

 

            

 

            

 

Projeto mapeia livros de fotografia em 11 países e chega a 150 títulos

Esta matéria saiu no Caderno2 do Estadão no dia 24 de novembro.

Não deve ter sido fácil, mas deve ter sido fascinante. Durante quatro anos um conselho de colaboradores (Marcelo Brodsky, Iatã Cannabrava, Lesley Martin, Martin Parr e Ramón Reverté) – ajudado por fotógrafos, designers e editores de 11 países sul-americanos, e capitaneados pelo historiador de fotografia e crítico e curador espanhol Horacio Fernández – correu atrás da produção imagética latino-americana a partir do conceito de fotolivros, ou seja, publicações em que o autor é protagonista: “Um fotolivro não é um livro ilustrado por fotografias. O fotógrafo participa de toda criação e realização com um editor e um designer”, nos contou por e-mail de Madri Horacio Fernández. O resultado é o volume Fotolivros Latino-Americanos, que chega às livrarias pela Cosac Naify em coedição com a RM, Aperture e Images em Manoeuvre.

É a primeira vez que se realiza uma empreitada de tal porte que procura fazer um panorama do que já foi publicado do México até a Patagônia do começo do século 20 até o início do 21. Ao final temos mais de 150 títulos selecionados que conversam com a literatura, as artes plásticas, os momentos históricos e conturbados de nosso continente. Uma linha do tempo, dividida em nove temas: O livro do século 20, Palavra e Imagem, A cidade e os livros, Os esquecidos, Fotolivros de artistas, A imagem e o texto, Tempos difíceis, Cor, Os Contemporâneos. Temáticas que nos ajudam a pensar como identidade continental, mas ainda, talvez, não possamos falar de uma identidade estilística: “Não sei se podemos falar de um estilo latino-americano. O que podemos afirmar são algumas semelhanças. A fotografia latino-americana é culta, cosmopolita e urbana. Mas há diferenças também: por exemplo, em Cuba, os fotolivros são bem propagandísticos”, escreve Fernández. Mesmo assim, como o próprio autor anuncia na introdução do livro: “Os fotolivros nos permitem explicar as semelhanças, as influências, os estilos, tudo o que une os fotógrafos e também os separa.

Um trabalho que praticamente começou do zero, visto que nenhum levantamento desse tipo havia sido feito até então. A ideia nasceu em 2007 no 1.º Fórum Latino-Americano de Fotografia organizado por Iatã Cannabrava e Marcelo Brosky em São Paulo, no Instituto Cultural Itaú.

Durante os debates os pesquisadores, críticos e historiadores se deram conta dessa lacuna. Claro que no início sem dados e com impossibilidade de quantificar a produção não era possível prever o resultado: “Foi uma surpresa quando começamos a contabilizar os resultados e percebemos que havia publicações maravilhosas editadas nas mais diversas cidades, muito mais do que esperávamos. Viajei muito pela América Latina, visitando bibliotecas, sebos, fotógrafos. Escrevi para editores, designers, artistas, etc.”.

Surpresa maior foi a intenção de editoras como a mexicana RM, a norte-americana Aperture e a brasileira Cosac Naify de publicar a pesquisa. E, assim, em 256 páginas poderão ser vistos trabalhos de fotógrafos da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Peru e Venezuela.

Destaque para nomes como o dos mexicanos Manuel Álvares Bravo e Graciela Iturbide, do chileno Sergio Larrain, dos brasileiros Claudia Andujar, Maureen Bisilliat, Boris Kossoy e Miguel Rio Branco, dos argentinos Sara Facio e Horacio Coppola e Marcus López, só para citar alguns nomes no meio de tantos que são apresentados. Do ponto de vista mais histórico uma surpresa como o livro de Pierre Verger, publicado em Buenos Aires em 1945: Fiestas e Danzas en el Cuzco y los Andes, ou os livros de Augustin Victor Casasola, sobre a Revolução Mexicana. Mas muito mais do que um livro ilustrado, este volume é uma verdadeira aula de história da fotografia latino-americana, ainda tão pouco discutida e conhecida. Vozes que finalmente vem à tona, encerrando anos de silêncio e desconhecimento. Um começo promissor, um primeiro passo que esperamos abra possibilidades para outras iniciativas ou pelo menos para um segundo volume dessa série: “Claro que esta é uma possibilidade, já que seguramente novidades vão surgir nos próximos anos, em vários países. Em relação ao Brasil, ainda há fotolivros de grande qualidade além daqueles apresentados neste volume”, finaliza Fernandéz.

Uma mostra sobre este compêndio será aberta em janeiro, em Paris, e depois vai a Madri, Nova York, São Paulo e Rio. Uma chance para conhecermos imageticamente o que já é conhecido por intermédio da literatura.

Almas reveladas e ampliadas

Este texto saiu no Caderno2 no dia 10 de novembro. Tentamos uma entrevista com o Steve Mccurry, mas infelizmente as respostas chegaram depois do fechamento da matéria. Abaixo então o texto publicado e em seguida a entrevista que não saiu no jornal.

Monges rezando, Kyaitko, 1994

São 30 anos andando pelo mundo com o único propósito de conhecer a humanidade e narrar, ou pelo menos tentar, sua história. Imagens que não se cansam de ser vistas, que nos sensibilizam pelas cores, pela delicadeza , mas com o peso da uma fotografia jornalística. São assim as fotografias de Steve Mccurry, conhecido através de suas reportagens na revista National Geographic e membro da agência Magnum desde 1986.

Steve Mccurry esteve presente em momentos cruciais de vários países como o Afeganistão, Líbano, Camboja, Índia e Tibete. Também fotografou o atentado do 11 de setembro em Nova York.  Como ele mesmo já disse em várias entrevistas , um dos aspectos importantes do fotojornalismo é poder mostrar para as pessoas o que está acontecendo.

Suas fotografias chegam agora em São Paulo por meio da mostra “Steve Mccurry – alma revelada” organizada em parceria com a Galeria Babel e que abre nesta quinta –feira no Instituto Tomie Ohtake. São cerca de 100 imagens que passeiam pelos inúmeros lugares por onde Mccurry passou. Inúmeras situações que ele fotografou: imagens de rituais, guerras, tradições pessoas. Geografias pessoais de um mundo que nem sempre temos a possibilidade de conhecer ou vislumbrar na imprensa diária. Cenas que procuram sair do senso comum.  Isso só se torna possível porque ele não precisa necessariamente se preocupar somente com o factual com a notícia em si, mas pode aliar a isso um certo mistério e incerteza que cerca a fotografia. Suas imagens não são decifráveis à primeira vista requerem um tempo de contemplação, de dialogo.

Procissão, Burma, 1994

Mas sem dúvida nenhuma falar de Steve Mccurry é falar também da imagem que se tornou um dos ícones do século: a da menina afegã, Sharbat Gula, fotografada em 1984 e que foi capa da National Geographic. Uma imagem impactante conhecida no mundo todo e que levou o fotografo a tentar encontrá-la novamente. Isso só foi possível 20 anos depois. O rosto já não era o mesmo, mas os olhos não perderam a intensidade e a profundidade do verde.

Mas é claro que Steve Mccurry não é fotógrafo de uma imagem só. Na exposição nos deparamos com várias de suas fotografias que narram as últimas décadas do mundo, trazendo à tona as marcas geopolíticas, as cicatrizes das guerras, a sutileza de uma prece de monges. Um do destaque da mostra é a inclusão de seis fotografias feitas durante o ataque às Torres Gêmeas, em setembro de 2001, em Nova York. Imagens diferenciadas, já que acostumado à cobrir conflito em outros países, Mccurry  se deparou com o fato de ter que registrar um ataque ao seu próprio país. Imagens que agora ao lado das outras reforçam o olhar que ele tem sobre o mundo.

Mas uma curiosidade também se faz presente. A indústria fotografia que dirigiu seu olhar para as inovações tecnológicas digitais acabou por tirar do mercado o filme kodackrome, na época do analógico um dos preferidos dos profissionais. Criado pela Kodak em 1935 deixou de ser fabricado em 2009. Coube a Steve fotografar o último rolo de filme e as fotos que fez são agora apresentadas nesta mostra, como uma homenagem a uma película que fez parte de sua vida neste quase 30 anos de fotografia. Na época em que a Kodak anunciou o fim do filme em várias partes do mundo realizaram-se experiências parecidas – fotografar o último kodachrome, mas no caso de Steve, foi a própria Kodak que entregou o filme ao fotografo.

Ao fim da exposição o que resta é a visão de um fotografo que está de acordo com a tradição mais refinada do documentarismo na busca de traçar uma possível história da humanidade.

Nova York, 11/09/2001

 Entrevista:

1. Uma mostra com mais de cem imagens. Podemos dizer que é uma retrospectiva?

     Não acredito que seja uma retrospectiva embora esta mostra reuna meus melhores trabalhos. Uma retrospectiva deveria compreender não parte do seu trabalho, ma o resumo de uma carreira.

2. O que é mais importante numa fotografia?

      Existem vários tipos de imagens, mas para mim o mais importante é poder contar uma história, despertar emoções. Óbvio que a luz e a composição são importantes, mas o contexto de uma história é o fundamental.

3. Fale do projeto o último Kodachrome. Como escolheu o tema a ser fotografado?

     O Kodachrome é um filme ícone. Provavelmene o melhor filme que j;a existiu. Quis fazer alguns retratos começando com Robert de Niro, fotografar uma tribo de nomades na Índia; atores indianos e é claro as ruas de Nova York onde vivo.

4. Você fotografou conflitos no mundo todo. Como foi fotografar um ataque me seu próprio país. Estou me referindo ao 11 de setembro?

      Como você disse eu acompanhei o horror da guerra em vários países, mas o 11 de setembro aconteceu na soleira da minha porta. Inicialmente fotografei do telhado da minha casa e em seguida andei pelos escombros e passei a noite fotografando. Tinhamos pouquissimas informações e não podíamos – no momento – calcular o tamanho da tragédia até chegar ao marco zero. Não dava para acreditar, parecia um pesadelo, ao mesmo tempo me dei conta que nossas vidas tinham mudado a partir daquele momento para sempre.

Exposição no Instituto Tomie Ohtake

Av. Faria Lima, 201.

Até 29/01

2X Alexandre

Abre na próxima quarta-feira, dia 19, na Arte Plural, em Recife, a exposição 2x Alexandre que reúne os trabalhos do Alexandre Sequeira e do Alexandre Severo. A curadoria é minha!

Um é Sequeira, o outro é Severo. O primeiro é de Belém, o segundo é de Recife. O Sequeira é um artista plástico que  – com muita competência – trabalha com a fotografia; o Severo traz em suas imagens a mais tradicional e forte escola do fotojornalismo.

c. Alexandre Sequeira

Aparentemente separados, os dois olhares destes profissionais se encontram quando o discurso é a poética imaginária.  Nestes dois ensaios que apresentamos agora ambos trabalharam a memoria, identidade .

Durante dois anos Alexandre Sequeira elaborou o trabalho Nazare de Mocajuba, numa ilha de pescadores, ao nordeste do Pará. Lá encontrou pessoas que nunca haviam sido fotografadas. Passou a registrá-los e mais, para criar uma maior intimidade passou a imprimir as imagens nas toalhas, lençois dos moradores. O resultado, uma trabalho delicado, bonito e emocionante.

 c. Alexandre Sequeira

Para comemorar o centenário de Canudos, Alexandre Severo, resolveu retratar o sertanejo. Dar-lhe visibilidade por meio da fotografia, torná-lo reconhecido e reconhecível. Rostos num fundo branco descontextualizados, que nos olham de frente, conversam conosco. Mas no meio do trabalho – muitas vezes isso acontece – as imagens do entorno, da montagem do estúdio a céu aberto se sobrepuseram ao retrato tradicional. Não seria possível descontextualizar. O homem e o meio ambiente eram um só. O resultado, cenas surpreendentes, desconcertantes.

c. Alexandre Severo

Um trabalhou com pescadores, o outro com sertanejos. Um a delicadeza do pano, o outro a firmeza da lona.

c. Alexandre Severo

Um ensaio tão semelhante ao outro. Dois Alexandres que ajudam a construir a memoria de nossa gente e por meio dos retratos os inserem de forma definitiva na nossa sociedade.

Uma aula de fotojornalismo

Estou lendo um livro sensacional: “Get the Picture: una storia personale del fotogiornalismo”, um relato do John G. Morris um dos mais importantes editores de fotografia. Foi editor da Life, durante a segunda guerra mundial, do Ladie’s Home Journal, onde teve a idéia de criar uma série “Um dia em família”que interessou muito o Edward Steichen e acabou dando origem a fantástica exposição no Moma “The Family of Man”nos anos 50. Em seguida ele foi  diretor da Magnum, trabalhou para o Washington Post e editor do New York Times. Desde 1983 vive em Paris. O livro é delicioso pois conta de forma informal de como é editar um jornal, suas relações com os fotógrafos e acima de tudo nos narra os bastidores do fotojornalismo. Um livro seminal que espero seja logo traduzido para o português! De qualquer forma também pode ser encontrado em língua inglesa:”Get a Picture; a personal history” . Na capa uma
foto do James Nachtwey , na minha opinão, o melhor fotojornalista do mundo, em ação em 1994. Uma leitura imperdível!

Voltamos à ativa

A partir de hoje o Tramafotográfica volta! Conversas, resenhas, opiniões, discussões e acima de tudo provocações. Depois de  quase um ano sabático, retomo meu blog. Com periodicidade semanal será atualizado sempre às segundas e quintas-feiras. Inicio hoje com um texto publicado na última edição da revista Foto Grafia, editada pela Lápis Produção e Cultura, no Vale do Itajaí.   

c. Hélio Campos Mello

Como ler uma imagem: a fotografia contemporânea e suas problemáticas

Este texto saiu em agosto na revista Fotografia.

Leia e comente!

Analisar uma imagem é muito mais do que simplesmente reconhecer seu traço primeiro. É preciso entender as estéticas fotográficas.

Vou partir de um conceito – dentre os muitos possíveis – de que a fotografia antes de mais nada pertence a esfera da comunicação e não da arte. Está na sua ontologia, no seu DNA, na intencionalidade de quem a inventou.

Qual a função da imagem fotográfica. Partimos de uma premissa explicitada por Andre Rouillé: “fotografias não documentam objetos ou pessoas, mas documentam situações e representações”. Devemos portanto compreender a criação fotográfica dentro de um contexto sócio-histórico.

Há tempos a semiótica já nos ajudou a compreender que a significação das mensagens fotográficas é culturalmente determinada e sua recepção necessita de códigos de leitura.

Neste caminho contarei com a ajuda de autores como Umberto Eco (Os limites da Interpretação); Laurent Gervereau (Histoire Du visuel ao XX si`ecle) ;Lorenzo Vilches (La Lectura de la Imagen); Mrtine Joly ( A Imagem e sua Interpretação); Giuseppe Mininni (Psicologia Cultural da Mídia); Oliver Sacks ( O olhar da Mente); Ian Jefrrey (How to Read a Photography; Alberto Manguel (Lendo Imagens); Luciano Trigo (A Grande Feira) e Charlotte Cotton (A fotografia como arte contemporânea).

Diz Martine Joly: “como existem diversos tipos de imagens, existem inevitavelmente diversos tipos de interpretações. Nenhuma mensagem, seja ela qual for, pode se arrogar uma interpretação inequívoca”.

Mesmo assim devemos também lembrar (Umberto Eco) que a interpretação de uma obra não é ilimitada, existem regras de funcionamento.

Inegável também que muitas vezes somos reféns de nossos próprios olhos e de nosso referencial teórico e repertório cultural. Muitas vezes antes de interpretar uma imagem eu já criei um significado. Claro que isso não significa que ele permanece imutável. Mais uma vez recorremos a Joly: “em que medida nossa interpretação está já em parte construída, antes mesmo de termos acesso às mensagens visuais em concreto?”

Interpretar é conferir sentido. O contexto sócio-histórico de alguma maneira já nos “condiciona”a uma determinada interpretação: “o reconhecimento de representações pode requerer uma espécie de aprendizado, a compreensão de um código ou convenção além daqueles necessários para compreender os objetos”, relata Oliver Sacks.

A grande dificuldade que temos é afirmar categoricamente qual linha devemos seguir para interpretar as mensagens visuais. Martine Joly nos apresenta esta multiplicidade: conhecimento (formas que o homem dispões para se conhecer e conhecer seu ambiente); percepção (teoria da revelação do mundo); recepção (teoria da recepção das obras); leitura (semiologia/semiótica) e interpretação (os limites): “durantes anos privilegiou-se o autor, em seguida  a obra para terminarmos com o espectador. Todos estes conceitos, na verdade, podem ser resumidos num único: ler imagem e atribuir significados. Interpretar é criar um ritmo, uma leitura Possível, atribuir sentido e significado para aquilo que foi construído imageticamente.

Lembramos o que já sabemos: o caráter ambíguo da fotografia. Seguindo as linhas Teóricas da semiótica e pensando na fotografia como vestígio do real (portanto indiciária) ela afirma a existência, mas por ser representação ela sempre uma ficção.

Aqui quem nos ajuda é o Alberto Manguel: “…a existência passa em um rolo de imagens que se desdobra continuamente, imagens capturadas pela visão e realçadas ou moderadas pelos outros sentidos, imagens cujos significados (ou suposição de significados) varia constantemente configurando uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e das palavras traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa existência”. Portanto estamos na área dos símbolos, sinais, mensagens, alegorias: “a imagem da origem a uma história que por sua vez dá origem a uma imagem”. Mudanças de pontos de vista, mudanças de interpretações.

A partir destas premissas tentamos compreender a construção da fotografia contemporânea e suas problemáticas.  Começamos com uma frase do pintor Kandisky e que também inicia o livro de Luciano Trigo “A grande Feira”: “Cada época cria uma arte que lhe é própria e que nunca renascerá”. Parece que a arte própria da nossa época é aquela conseguida por meio da imagem fotográfica. A fotografia está na moda: todos falam sobre fotografia, festivais se sucedem pelo Brasil, cursos acadêmicos abrem sucessivamente no Brasil todo, fotografias estão sendo o tempo todo mostradas para nós. Mesmo assim parece que ainda existe um vácuo, um grande vazio sobre o pensar fotografia. Discussões giram sempre em torno de clichês do tipo : “hoje todo mundo fotografa”, “hoje qualquer um é fotografo”. Ora isso acontece desde a invenção da fotografia. Não é nenhuma novidade. A novidade é que fala-se mais sobre isso.  E daí que todo mundo fotografa? Alguém ficaria triste se todo mundo fosse alfabetizado? Soubesse ler e escrever? Qual é o problema? Reserva de mercado? Esquece-se que quanto mais as pessoas fotografarem maior será sua capacidade de alfabetização visual, de saber compreender a dificuldade em fazer uma imagem. Nem todo mundo que sabe ler e escrever é Machado de Assis.  O que deveriam dizer os cineastas então, quando agora qualquer fotografo acha que pode fazer um vídeo? Um filme? E muitos de péssima qualidade sem a menos linguagem cinematográfica? Sim, fotografa-se muito hoje, mas nunca se viu tão pouco.

O que estamos vendo? Qual o papel da fotografia?  Construções artísticas (no sentido mais amplo desta palavra) ou atendimento a um mercado das galerias. Como ler e interpretar um imagem hoje? Ainda nos referenciando ao livro do Luciano Trigo, lemos logo nas primeiras páginas: “o sonho que qualquer jovem artista é ser absorvido pelo sistema, ter conotação internacional, expor nas galerias e museus da moda aparecer na mídia”. E é isso que vemos hoje, curadores e professores referenciando obras que ele mesmo cultivam, criadores de fogos de artifício. Sempre as mesmas pessoas nos mesmos lugares, um ou dois no máximo curadores da moda que nos obrigam a ver sempre as mesmas obras das mesmas pessoas.

Por outro lado é bem verdade que nunca se falou tanto sobre fotografia. Diz Charlotte Cotton: estamos vivendo um momento excepcional para a fotografia, pois hoje o mundo da arte a acolhe como nunca o fez e os fotógrafos consideram as galerias e os livros de arte o espaço natural para expor seu trabalho”.

Repetimos a pergunta, o que estamos vendo? “A percepção não se separa da compreensão. Todo ato de ver implica em saber o que se vê”, ensina Lorenzo Vilches. Portanto embora uma imagem possa remeter ao visível, tomar alguns traços emprestados do visual, sempre depende da produção de um sujeito. Lê-la não é tão natural como parece: Ö fato de o homem ter produzido imagens no mundo inteiro, desde a pré-história até nossos dias, faz com que acreditemos sermos capazes de reconhecer uma imagem figurativa em qualquer contexto histórico e cultural. No entanto deduzir que a leitura da imagem é universal revela confusão e desconhecimento”(Martine Joly).

Ler uma imagem da contemporaneidade é tentar compreender a demanda de produção, a falta de  substância ou espessura por trás de uma imagem ou que leva muitos criticos a criarem definições como estética inexpressivanascida na verdade nos anos 50 na escola alemã; ou “imagens de alguma coisa”, fotografias que nascem do mero encontro casual; ou a “fotografia de conseqüência”, a que se liga mais ao documental., fotógrafos que desconstroem o fotojornalimo, fotografando temas ligados à imprensa mas com um olhar artístico”.

Ler uma imagem contemporânea é compreender que ninguém quer mais ser fotografo hoje em dia, todos querem e se autodenominam artistas. Mas ao mesmo tempo que procuram criar novas estéticas, a fotografia – sempre independente – se transforma hoje pela mão destes artistas”na imagem do banal, banalidade, um “fotografia sem qualidade”, como afirma Dominique Baqué fazendo referencia ao livro de Musil “Um homem sem qualidade”.  A arte do banal. A fotografia volta  a ser a arte de expressão de massa por excelência.

Diário do front por um herói da câmera

Matéria minha no Estadão de hoje.

Sai no Brasil registro da 2ª Guerra pelo fotógrafo húngaro Robert Capa

18 de abril de 1945. Robert Capa acompanha soldados americanos que estão à procura de atiradores alemães: mesmo tendo se especializado na sua cobertura, era crítico ferrenho da guerra

Simonetta Persichetti

Robert Capa (1913-1954) queria ser escritor e, se tivesse seguido este seu primeiro impulso, provavelmente seria um cronista brilhante. Por acaso, se tornou fotógrafo e inscreveu seu nome na história do fotojornalismo mundial. Mas não esqueceu das letras e resolveu escrever um diário de sua passagem pela Segunda Guerra Mundial. O diário se tornou livro: Ligeiramente Fora de Foco, ilustrado com suas imagens feitas durante a Segunda Guerra e publicado pela primeira vez em 1947 e agora no Brasil pela Cosac Naify. 

Com excelente bom humor, a narrativa que vai intermediar revelações de suas bebedeiras, romances (fuga deles), jogos de pôquer, articulações para conseguir se tornar um correspondente de guerra, todo um panorama das décadas 1930-1940 se desenvolve diante de nossos olhos. Como se tomássemos emprestado o seu olhar que, apesar de ter se tornado conhecido pela sua cobertura de guerra – foi sempre um crítico contumaz dela. 

Robert Capa inventou a si mesmo: nascido Endré Erno Friedmann, em 22 de outubro de 1913 em Budapeste é obrigado por seus ideais marxistas a deixar a Hungria. Vai para Berlim, onde estuda ciências sociais e é na Alemanha que inicia, em 1931, sua carreira como fotojornalista na agência Dephot, a mais importante da época. 

A ascensão do nazismo o obriga a deixar Berlim e ir para Paris. É lá, juntamente com a também fotógrafa e sua mulher Gerda Taro, que em 1934 ele cria Robert Capa repórter mítico nascido nos Estados Unidos. Ele se torna seu próprio representante. 

O fotógrafo que ninguém conhecia fica célebre rapidamente e se assume como tal. Em 1936, parte com Gerda para a Espanha para cobrir a Guerra Civil Espanhola. Gerda morre durante a cobertura no ano seguinte. 

Espanha. Ele inicia seu trabalho como fotógrafo de conflitos. É na Espanha que realiza sua talvez mais lembrada e contestada foto, a do miliciano no momento de sua morte. Muitos afirmam que foi forjada. Seu biógrafo Richard Whelan sempre negou. Debates sobre este assunto são sempre acirrados. Nada, por enquanto, foi demonstrado. Mas, sem dúvida, esta é uma das imagens que ajudaram a reforçar a lenda Capa.

É por intermédio de seus olhos que aprendemos que a guerra nem sempre está na batalha, mas nos olhares das vítimas, daquelas que sofrem as consequências de algo sobre o qual não tiveram nenhuma chance de opinar. 

Ele não gostava da guerra. Isso fica claro em seus escritos. Muitas vezes se nega a fotografar. Respeita momentos, pessoas. Baixa a câmera. Em outros instantes sabe que aquela é a imagem certa e sua divulgação pela mídia (a maior parte de suas imagens da guerra foram publicadas na revista Life) faria a diferença. 

Ligeiramente Fora de Foco é o título que ele tira de uma de suas experiências de quando estava em Argel. Ele foi picado por vários percevejos e como reação ficou com os olhos inchados e sem conseguir abri-los direito diz: “Estava com meus olhos fora de foco.” Retoma esse mesmo conceito ao falar de suas inesquecíveis fotos do desembarque da Normandia, em 1944: “Ligeiramente fora de foco, um pouco subexpostas e a composição não é nenhuma obra de arte.” 

Robert Capa – quase como uma catarse – desfaz o mito que ele mesmo ajudou a criar. Como escreve o também fotógrafo e jornalista Hélio Campos Mello na contracapa do livro: “Numa prosa que cativa pela simplicidade, pelo humor e pelo brilhante relato histórico, ele mostra sua fase desconhecida. E, no movimento de desconstrução do mito, surge um homem inteligente, fascinante e que – suprema qualidade – se levava muito pouco a sério.” É isso. 

Na Sicília. Hilariante a narrativa de seu primeiro pulo de paraquedas na Sicília: “…menos de um minuto depois aterrissei numa árvore no meio de uma floresta. Durante o resto da noite fiquei ali pendurado. Quando amanheceu, três paraquedistas me encontraram e cortaram as cordas. Eu me despedi da minha árvore. Nossas relações tinham sido íntimas, mas um pouco prolongadas demais.”

Robert Capa nos conta de seus medos, de suas angústias, de sua vontade de abandonar tudo, mas também da adrenalina de seu ofício. Refinado e bon vivant, gostava de tomar champanhe, comer ostras e discutir com seus amigos escritores como John Steinbeck, com o qual realizou um trabalho na Rússia (leia abaixo) e Ernest Hemingway, para ele seu mentor que carinhosamente chamava de Papa. Não podemos esquecer que ele estava às vésperas de completar 30 anos quando escreveu esse livro. 

Ironicamente, a mitologia supera sua criatura. Robert Capa morreu muito cedo, aos 41 anos, na Indochina, ao pisar numa mina (medo que ele descreve no livro quando ao chegar a Argel e se afastar do carro se encontrou no meio de um campo minado). Onze anos depois, ele também se afasta do carro, mas desta vez pisa na mina. Diz a lenda que ele morreu sem deixar cair sua câmera. Não se sabe. Mas sua morte prematura ajudou a confirmar o mito e esse livro agora o reforça, já que se sabe que ele nunca se colocou como protagonista de suas imagens, afinal esse lugar sagrado era dos personagens que retratava.

Múltiplas lentes

Texto que saiu no Caderno Cultura do Estadão de domingo

A festa visual dos livros de fotógrafos brasileiros que chegam às estantes de olho no Natal

Simonetta Persichetti ESPECIAL PARA O ESTADO – O Estado de S.Paulo

São pelo menos quatro livros de fotógrafos brasileiros que estão previstos para serem lançados neste fim de ano. Publicações que corroboram a ideia de que essa arte tem encontrado cada vez mais espaço em nossas editoras. São autores importantes para que possamos compreender por onde anda nosso olhar e quais preocupações temos na árdua missão de documentar.

A grande lacuna agora preenchida é, sem dúvida, a obra sobre o fotógrafo de moda e publicidade Miro, que há 40 anos está no mercado (leia entrevista nesta edição, por Lilian Pacce). Um dos mais virtuosos de nossos profissionais, há tempo merecia essa homenagem, Miro – Artesão da Luz (Luste Editores, 194 págs., R$ 134), compilado e organizado por José Fujocka e Danilo Antunes, foi lançado ontem, no MIS.

O que as lentes do paulista Azemiro de Sousa captam são miríades de luz e criatividade. Mesmo trabalhando em um mercado bem delimitado, ele sempre impôs sua autoria e registrou o que quis. Como se tudo fosse apenas resultado de um momento mágico, guiado pela intuição. Um artista que busca o autoconhecimento na obra que realiza.

Em delicioso texto escrito pelo jornalista e também fotógrafo Pisco Del Gaiso, conhecemos um Miro que, por ter sido sempre avesso à badalação, pouco se deixava ver. Como se não quisesse ser protagonista e oferecesse o lugar de honra para as imagens que criava. É um mito que se desfaz no melhor sentido, pois dá origem a alguém preocupado em revelar seu processo criativo e nos fazer entender por que, mesmo em silêncio, se tornou mestre de uma geração.

Em um ano de trabalho, Pisco Del Gaiso remexeu e garimpou nos arquivos que preservam quatro décadas de fotografia. Um mergulho no desenvolvimento da moda e da publicidade brasileira a partir dos anos 1970, o olhar de um narrador de um pedaço da história cultural brasileira. Por isso, é oportuno afirmar que as lentes de Miro captam além do universo da moda e publicidade, seu talento nos mostra que ele é muito mais. Antes de tudo ele é fotógrafo.

Imagens que guardam testemunhos

Numa outra vertente e estética, mas nem por isso menos poética, Valdir Cruz, lança livro e abre a exposição Bonito – Confins do Novo Mundo (Editora Capivara, R$ 120). É com técnica precisa que Valdir Cruz constrói suas fotografias realizadas em Mato Grosso do Sul. Necessária para a sofisticação de seu trabalho, ela não cerceia, porém, a elegância do olhar do artista. Embora use sempre câmeras de grande formato e tenha sua estética voltada para a paisagem, consegue se superar e criar desafios, transformando em abstração a imagem que se oferece. Ele não a registra, mas a interpreta.

O projeto exigiu três anos de viagens ao centro-oeste brasileiro, conhecido por sua beleza e, por isso mesmo, difícil de ser captado sem cair no clichê. A historiadora Lélia Ribeiro, que assina a introdução do livro, lembra que no século 16 a região aparece como “Confins do Brasil” e é por isso mesmo que a própria Lélia insere esse subtítulo ao livro de Valdir – Confins do Novo Mundo, um espaço preservado pelos próprios habitantes e agora também pelas imagens.

E se toda fotografia é por si só documental, embora nem sempre documento, como ensina o filósofo André Rouille, vai ser em outros dois livros, ambos previstos para serem lançados no dia 7 de dezembro, que poderá ser encontrada a tradição da fotografia documentarista brasileira. De um lado está a obra de Christian Cravo, Nos Jardins do Éden (Throckmorton Fine Art, R$ 80), que será apresentada com a exposição dia 7, no Instituto Tomie Ohtake. Um trabalho que retoma ou continua a discussão buscada por Christian com o intuito de relatar as experiências ritualísticas da humanidade. Ele tenta entender quem é o ser humano e, nessa busca, passa pelos rituais de passagem.

Desta vez, ele está no Haiti, onde acompanha as cerimônias de vodu não com olhar antropológico ou estrangeiro, mas com a ideia de tentar entender o que significam certas solenidades. São imagens feitas antes do terrível terremoto que devastou o país em janeiro deste ano. Lá, realizou um pequeno vídeo de 25 minutos, Testemunhos do Silêncio. Não com um olhar sensacionalista ou espetacular, mas expressando sua enorme vontade de conhecer e entender. Ele sabe que a fotografia é conhecimento e é com ela que busca se expressar.

De outro lado está o livro do jornalista Luis Humberto: Do Lado de Fora da Minha Janela, do Lado de Dentro da Minha Porta (Editora Tempo d”Imagem, R$ 85), um legado para entender o fotojornalismo brasileiro. Ele foi o fotógrafo de uma época na qual o seu trabalho por vezes era o único portador de informações e notícias, quando os censores mais preocupados com o texto se esqueciam da imagem.

Herdeiro da tradição de Erich Salomon – o pai do fotojornalismo moderno -, Luis Humberto ensina como fazer jornalismo com a fotografia. Mas, assim como escreve no seu livro Fotografia, a Poética do Banal, ele também explica que é no cotidiano, nas registros do dia a dia, que a imagem se constrói e o olho se aprimora: “É como se fosse um livro testamento”, brinca ele, por telefone, com o Estado.

“Quero deixar como herança o que eu fiz e como fiz.” Mas não se pense que ele pendurou as chuteiras. Já tem pronto um novo projeto de inéditos: “Não posso dizer o que é, senão deixa de ser inédito”, mas aponta, ou melhor, dá uma pista: “A graça da fotografia é que não precisamos nos fixar numa só ideia.” Esses livros mostram que ele tem razão.