Confesso que sempre me irritou esta questão em volta da fotografia do Che feita pelo Alberto Korda. (1928-2001). Me irritou no sentido das pessoas, ou algumas pessoas, especialmente no Brasil, divulgarem que Korda coitado não recebeu nunca nada pela foto e foi roubado pelo editor italiano Giangiacomo Feltrinelli. Sempre pensei que, se o Feltrinelli tinha a foto, era porque o própria Korda a entregou e não pediu nada. Mas a dúvida ética sempre persistiu, a questão do direito autoral também, mesmo na minha cabeça. No Estadão de ontem, no Caderno de Cultura, finalmente sabemos mais sobre esta história. A entrevista com o fotógrafo foi feita em 1988 pelo também fotógrafo cubano Roberto Paneque Fonseca e pelo brasileiro Ricardo Malta – um dos fundadores da famosa agência fotográfica F4. Em trechos da entrevista publicados no jornal é o próprio Korda que afirma: “…me dou por satisfeito por Feltrinelli ter feito o favor a mim, um fotógrafo que se dedicava a fazer moda, de retratar a Revolução porque me coube a época em que vivi. Eu me sinto famoso de passar a posteridade com uma obra minha; não eu; uma obram inha, graças a Feltrinelli. Eu lhe dei a foto. Ele podia fazer o que quisesse com ela, porque eu a dei”. Ponto! Fim de discussões e divagações. Um outra informação é que isso também aconteceu porque Fidel tinha abolido o direito autoral dizendo que era um atentado contra a cultura. E Korda estava de acordo com isso.
Bom, lembrando disso busquei em meus arquivos umaentrevista que fiz com Korda em 1997, via telefone para o Caderno2 do Estadão. Também porque esta matéria foi feita por ocasião dos 30 anos da morte de Che Guevara. Hoje são 40!
Reproduzo parte da matéria abaixo:
Estado: Como foi a chegada de Fidel Castro a Havana. O senhor tem fotos dessa época ou se juntou a revolução depois?
Korda: Não, eu estava lá desde o início e fiz uma das fotos mais famosas dessa época. Sempre estive ligado à revolução e saia às ruas para fotografar o espírito da época.
Estado: Mas antes da revolução, no governo de Fulgêncio Batista, o senhor era um fotógrafo de moda, de publicidade…
Korda: Sim, isso foi na época capitalista. Eu sempre gostei da fotografia e gostava de fotografar moda, mas em seguida veio a revolução e eu gostava muito mais dela, acreditava nela. Então mudei de ramo.
Estado: O senhor foi o fotógrafo oficial de Fidel Castro?
Korda: Oficial não, pessoal. Eu trabalhava para um jornal que se chamava “Revolucion”, diário oficial cubano e tive a oportunidade de trabalhar diretamente com Fidel inclusive acompanhando-o em várias viagens que ele fez ao exterior.
Estado: E o que aconteceu depois, por que esse trabalho parou?
Korda: No final dos anos 60, o governo criou um departamento de fotografia para retratar os líderes revolucionários. Esse departamento estava vinculado ao Ministério do Interior. Para trabalhar nele era necessário ser militar. E como eu não gosto da carreira de militar, resolvi fazer outro tipo de fotografia.
Estado: O senhor não podia voltar para fotografia de moda. Resolveu fotografar o que?
Korda: Fui fotografar o fundo do mar. Durante doze anos me dediquei à fotografia submarina e posso lhe garantir que esse tipo de trabalho me deu imenso prazer.
Estado: O senhor foi o fotógrafo pessoal de Fidel Castro, contudo a sua foto mais famosa é a imagem do Che Guevara, que ironicamente acabou se tornando uma das imagens mais divulgadas do mundo capitalista. Como o senhor vê isso?
Korda: Acho muito interessante essa capacidade do capitalismo de transformar mitos em mercadoria. É a forma mais eficaz para desmistificá-los. Che Guevara morreu há trinta anos e hoje muitas crianças ou jovens que nem eram nascidos na época, e muitos menos sabem quem era Che usam sua imagem nas roupas como se estivessem vestindo uma malha com um personagem da Disney. Perdeu totalmente a razão de ser.
Estado: A quantas anda a fotografia cubana?
Korda: Vai muito bem. Existe um grupo de jovens realizando trabalhos muito interessantes. São pessoas muito atuantes e ligadas às várias correntes da fotografia. É um novo olhar. Enquanto nós estávamos preocupados com a fotografia realista eles se preocupam mais com o aspecto artístico. Pena que seja muito difícil encontrar material fotográfico. Temos grande dificuldade em obter filmes, papel e químicos. Eu já sou da velha geração, mas vejo os jovens realizando um belo trabalho.
Estado: O senhor continua fotografando?
Korda: Raramente. A maior parte do meu tempo estou envolvido com essa exposição que esta correndo o mundo. E só fotografo quando um assunto me interessa muito.
Estado: E quais são os assuntos que lhe interessam?
Korda: Em geral o ser humano. A fotografia sempre foi o meu meio de vida, foi um grande amor. Fui o primeiro fotógrafo em Cuba a fazer fotos de moda, porque amava as mulheres e a forma como se vestiam. Esse amor foi superado pelo meu amor pela Revolução, em seguida veio o fundo do mar. Mais do que um meio de subsistência a fotografia sempre me deu um grande prazer.
Estado: E o que o senhor conhece da fotografia brasileira?
Korda: Alguma coisa, já que tenho alguns livros. Sempre considerei a fotografia brasileira como a vanguarda da América Latina. Vocês sempre tiveram ótimas revistas. Antes da Revolução, quando ainda era fotógrafo de moda, portanto no começo dos anos 50, a revista Cruzeiro fez uma reportagem comigo. Fiquei encantado com a matéria.